1.3. A Web 2.0 e a Cultura da Internet

Será que o que se passa relativamente a essa tradição de abertura de que fala Paul Anderson se estende a outras áreas? Isto é, representará a Web2.0 uma verdadeira mudança de paradigma, uma nova era na utilização da web, ou apenas uma evolução natural que, com algumas novas práticas ou tecnologias, não faz mais que prolongar e intensificar o que já existia há muito?

Das várias vozes que advogam esta última perspectiva, a mais notável não pode deixar de ser a daquele que é o inventor da própria World Wide Web, Tim Berners-Lee[1]. Em entrevista a Scott Laningham, para os developerWorks podcasts da IBM, diz ele em resposta à pergunta sobre se concordava com a perspectiva de que a Web 1.0 tinha a ver com a ligação entre computadores e com o disponibilizar informação, enquanto que a Web 2.0 tem a ver com a ligação entre as pessoas e o facilitar de novas formas de colaboração:

Totally not. Web 1.0 was all about connecting people. It was an interactive space, and I think Web 2.0 is of course a piece of jargon, nobody even knows what it means. If Web 2.0 for you is blogs and wikis, then that is people to people. But that was what the Web was supposed to be all along. And in fact, you know, this ‘Web 2.0’, it means using the standards which have been produced by all these people working on Web 1.0.(Laningham, 2006: Podcast)

E percebe-se melhor, um pouco depois, porque é que Berners-Lee rejeita, do seu ponto de vista, esta noção de ruptura relativamente ao passado da Web. Inventor do WorldWideWeb – o primeiro browser, criado em 1990 num sistema NeXT (Berners-Lee, 2000), diz ele a propósito desta aplicação que permitia “ver” a Web:

And the original World Wide Web browser, of course, was also an editor (…) We’d had WYSIWYG editors for a long time. So my function was that everybody would be able to edit in this space, or different people would have access rights to different spaces. But I really wanted it to be a collaborative authoring tool. And for some reason, it didn’t really take off that way (…) But I’ve always felt frustrated that most people don’t … didn’t have write access. (Laningham, 2006: Podcast)

Para Berners-Lee, o sucesso de wikis e blogues, decorrente do entusiasmo com que os utilizadores os adoptaram, apenas reflecte a necessidade das pessoas de serem criativas e de participarem no diálogo global (op. cit.). A possibilidade de editar o espaço que se visualiza, uma ferramenta colaborativa de autoria, a necessidade de criatividade das pessoas, a possibilidade de registar o que pensam, de corrigir o que vêm que está mal, parecem, de facto, noções que configuram uma Read/Write Web, uma outra designação para a Web 2.0. Note-se como, apesar de ser alguém profundamente envolvido na criação e desenvolvimento dos suportes tecnológicos que sustentam a Web, o discurso de Berners-Lee se centra na interacção e na comunicação entre as pessoas, na colaboração, na criatividade e na produção de conteúdos, não no aparato tecnológico que lhe subjaz. Ainda nas suas palavras:

I have always imagined the information space as something to which everyone has immediate and intuitive access, and not just to browse, but to create.(citado por Paul Anderson, 2007: 14)

Por sua vez, e se prolongarmos um pouco mais esta viagem em direcção ao passado, muitos destes conceitos associados à Web que temos vindo a referir – liberdade, partilha, colaboração, comunicação, intervenção cívica, alteração nas relações de poder, etc. – podem encontrar-se na própria génese e desenvolvimento da Internet. Ou, dito de outro modo: o chassis tecnológico que suportou o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação parece ter sido sempre recoberto por um conjunto de valores e práticas que, à falta de melhor termo, poderíamos designar como “cibercultura”, de que a Web 2.0 seria, apenas, a instância mais recente.

No capítulo dois de La Galaxia Internet, intitulado La Cultura de Internet, Castells (2001: 51) afirma:

Los sistemas tecnológicos se producen socialmente y la producción social viene determinada por la cultura. Internet no constituye una excepción a esta regla. La cultura de los productores de Internet dio forma a este médio.

Esta afirmação de Castells, que este usa como ponto de partida para dizer, mais à frente, que “La cultura de Internet es la cultura de los creadores de Internet” (op. cit.: 51), é da maior importância, porque põe em causa a perspectiva mais ou menos disseminada entre muitas das vozes que reflectem sobre o impacto e o papel das (novas) tecnologias na sociedade e nos indivíduos. De facto, ao contrário da crença de que são os avanços tecnológicos que vão moldando a sociedade e as formas de viver e comunicar, podemos, a partir desta ideia, perspectivar o processo de um outro ângulo: são as dinâmicas culturais e os processos de transformação social que favorecem ou potenciam o desenvolvimento tecnológico, condicionando-o ou moldando-o como resposta a necessidades não preenchidas e que, através dele, encontram formas operacionais de se exprimir e realizar.

Este deslocamento do olhar sobre as tecnologias como o motor das transformações para os processos culturais e sociais que estão na base do desenvolvimento tecnológico ajuda desde logo a explicar, por exemplo, a história (já relativamente longa) do insucesso da introdução dos computadores nas escolas, ou os enganos e mal-entendidos em que se têm arrastado boa parte das experiências na área do ensino online ou do e-learning.

Sem as convulsões registadas nos anos 60 nos Estados Unidos da América, que passaram muito pela desvinculação de uma elite universitária face a um modelo de sociedade em que não se reviam e que queriam mudar profundamente, jamais teríamos tido a Internet como a conhecemos hoje (a Universidade de Berkeley, por exemplo, centro do Free Speech Movement e da contestação aos poderes instituídos nos anos 60, emerge na década seguinte como um dos principais pólos de desenvolvimento tecnológico que está na base da Internet). A expansão e a valorização do conceito de liberdade individual, a descoberta do conhecimento enquanto valor económico primordial, a resistência à autoridade e à organização “vertical”, privilegiando-se uma organização “horizontal” de partilha, cooperação e co-responsabilidade são alguns dos aspectos que resultaram desse processo e que se encontram embebidos na própria natureza da Internet. Conceitos em voga nos anos 70 e 80, quando a Internet dava os primeiros passos e se desenvolvia, como “small is beautiful”, “think globally, act locally” ou a “grassroots economy” centravam-se precisamente na ideia de redes de partilha (de poder, de competências e de conhecimentos), cooperação e entreajuda, que constitui um dos pilares do open source e do software livre. Muitos destes aspectos estão presentes em três dos quatro estratos culturais que, segundo Castells (2001), produziram e moldaram a Internet:

1) a cultura tecnomeritocrática, que promove o desenvolvimento tecnológico segundo um modelo académico – investigação científica partilhada, reputação e reconhecimento obtidos mediante a qualidade e a operacionalidade do trabalho produzido, a avaliação pelos pares e a publicitação e disseminação da investigação realizada e do conhecimento construído;

2) a cultura hacker, constituída por wiz kids que privilegiam sobretudo a liberdade, a cooperação, a reciprocidade e a informalidade, livres de constrangimentos institucionais e/ou corporativos e que encontram na rede e na virtualidade o seu habitat natural;

3) as comunidades online, que deram conteúdo e expressão social ao uso da tecnologia, trazendo para a rede a vida social e usando-a para expandir as formas de interacção, cooperação e entreajuda.

Ironicamente, a Internet como meio privilegiado de comunicação e acesso à informação que conhecemos hoje, massificada e largamente disseminada, não teria sido possível sem um quarto estrato cultural: o dos empresários capitalistas. Largamente alheios aos altos e nobres princípios e valores dos restantes estratos, interessados apenas em fazer dinheiro, o mais possível, foram no entanto eles que emprestaram (e continuam a emprestar) ao conhecimento disponível o investimento necessário para a sua concretização a larga escala.

Hoje, o espaço privilegiado onde se desenvolve a cultura digital é ainda um contexto muito heterogéneo, em que novas formas muito eficientes de comunicar e de armazenar, processar e distribuir informação coexistem com formas muito anárquicas e de baixo valor informativo e comunicativo. Por outro lado, a diversidade de práticas e experiências que resultam de uma grande variedade de subculturas e redes de interesses fazem da cibercultura um conceito complexo e multifacetado. Mas nesta linha que traçámos a partir de Berners-Lee e de Castells, parece indubitável que muitos dos elementos constitutivos da natureza da Internet e da Web, incluindo um certo carácter de contra-cultura e de contra-poder(es), um espaço de liberdade e de criatividade, descentralizado e “deslocalizado”, se encontram presentes em muitas das caracterizações da Web 2.0. Desse ponto de vista, a obra The Cluetrain Manifesto: The End of Business as Usual, publicada em 1999 por Chris Locke, Rick Levine, Doc Searls e David Weinberger, parece-nos ilustrar claramente essa relação de continuidade. Veja-se também, apenas a título de exemplo, a referência que Slevin faz à noção de “esfera pública” de Habermas, definida como

a forum, constituted by a community of individuals, coming together as equals, capable of producing and reproducing a public opinion through critical discussion, argument and reasoned debate. (citado por Slevin, 2000: 76)

Não sendo só isto, a cibercultura pode ser também isto, expresso na imensidão de blogues e user-powered sites[2] orientados para a dissecação e discussão públicas dos mais variados temas, incluindo a questionação da informação veiculada nos média dominantes, como a televisão, a rádio ou os jornais, ou as outras formas já referidas através das quais milhões de pessoas em todo o mundo se envolvem em verdadeiras redes de produção e de partilha de informação e de conhecimento.

Em suma, diríamos que a cibercultura parece construir-se na confluência das características já referidas relativas à génese e desenvolvimento da Internet e da Web, permanecendo ainda central naquilo que se designa comummente como Web 2.0. É no próprio Tim O’Reilly que podemos encontrar um fundamento sólido para este continuum que tentámos aqui traçar. Numa das várias tentativas posteriores para clarificar o conceito de Web 2.0, define assim uma das regras essenciais para o sucesso nessa nova plataforma:

Build applications that harness network effects to get better the more people use them.(O’Reilly, 10-12-2006)

E, em jeito de comentário a este princípio que havia anteriormente formulado como “harnessing collective intelligence”, acrescenta, quase como num aparte:

(Eric Schmidt has an even briefer formulation of this rule: “Don’t fight the internet.” (…) Think deeply about the way the internet works, and build systems and applications that use it more richly, freed from the constraints of PC-era thinking, and you’re well on your way. Ironically, Tim Berners-Lee’s original Web 1.0 is one of the most “Web 2.0” systems out there — it completely harnesses the power of user contribution, collective intelligence, and network effects).(op. cit.)

Resta saber se, tal como a “esfera pública” de Habermas, a cibercultura vai acabar por ser dominada pelos interesses comerciais e pela intervenção dos governos, sempre ávidos de controlar o(s) discurso(s) público(s) ou se, pelo contrário, vai conseguir preservar as características que herdou dos processos sociais e das dinâmicas culturais que lhe deram origem. Há, sem dúvida, perigos emergentes, desde logo os que resultam do excesso de informação e das estratégias das grandes corporações, como notam Geert Lovink (05-09-2008), em The society of the query and the Googlization of our lives (Stop searching, start questioning, é o mote deste artigo), ou Nicholas Carr, que no seu artigo de 2008, intitulado Is Google Making Us Stupid?, fala da forma como, na sua perspectiva, a nossa percepção da informação, nomeadamente no que se refere à leitura, está a ser “formatada” para uma abordagem mais superficial, de tempos de atenção muito menores, tornando-nos de novo consumidores menos críticos e mais facilmente manipuláveis pelos interesses comerciais que são a outra face (a melhor ou a pior, dependendo da perspectiva) da nossa experiência da Web como espaço social.

 

Notas

[1] Investigador no CERN, responsável pela criação da linguagem HTML e do protocolo HTTP, actualmente com um papel muito activo no desenvolvimento da chamada “web semântica”.

[2] Sites cujos conteúdos são da responsabilidade de grandes grupos de utilizadores. Alguns exemplos mais conhecidos são o Digg, o Delicious, o Slashdot ou o Youtube.

Referências Bibliográficas

Anderson, Paul (2007). What is Web 2.0: Ideas, technologies and implications for education. JISC Technology and Standards Watch. Disponível em http://www.jisc.ac.uk/media/documents/techwatch/tsw0701b.pdf[acedido em 15-12-2008].

Berners-Lee, Tim (21-11-2007). Giant Global Graph. Decentralized Information Group (DIG): timbl’s blog. Disponível em http://dig.csail.mit.edu/breadcrumbs/node/215 [acedido em 15-12-2008].

Berners-Lee, Tim (2000). Tejiendo la Red. Madrid: Siglo XXI.

Carr, Nicholas (2008). Is Google Making Us Stupid? The Atlantic, Julho/Agosto. Disponível em http://www.theatlantic.com/doc/200807/google [acedido em 15-12-2008].

Castells, Manuel (2001). La Galaxia Internet. Barcelona: Areté.

Laningham, Scott (Ed.) (2006). Tim Berners-Lee. Podcast. developerWorks Interviews, 22 de Agosto, site da IBM. Disponível em http://www.ibm.com/developerworks/podcast/dwi/cm-int082206txt.html[acedido em 15-12-2008].

Locke, Christopher; Levine, Rick; Searls, Doc; Weinberger, David (1999). The Cluetrain Manifesto: The End of Business as Usual. Disponível em http://www.cluetrain.com/book/index.html [acedido em 15-12-2008].

Lovink, Geert (05-09-2008). The society of the query and the Googlization of our lives. Eurozine. Disponível em http://www.eurozine.com/articles/2008-09-05-lovink-en.html [acedido em 15-12-2008].

O’Reilly, Tim (10-12-2006). Web 2.0 Compact Definition: Trying Again. O’Reilly Radar. Disponível em http://radar.oreilly.com/archives/2006/12/web-20-compact.html [acedido em 15-12-2008].

Slevin, James (2000). The Internet and Society. Cambridge, UK: Polity Press.