Ainda muito recentemente, Richard Nantel, referindo-se ao conceito de Wisdom of Crowds avançado por Surowiecki na obra com este título (2004), escrevia que
the benefit of collaboration over individual effort has been embraced as dogma. It’s now difficult to find anyone who believes that the work of an individual can be better than what is produced by a group (…) I disagree with the belief that the results of a group effort will usually produce superior results to the efforts of skilled individuals. (12-11-2008)
Stephen Downes, disponibilizando a ligação a este post no mega-filtro que é a sua newsletter diária OLDaily (Online Learning Daily), comentava:
Once again (*sigh*) the point of the Wisdom of Crowds and related writing (including my own) is not “the benefit of collaboration over individual effort.” It’s not about ‘collaboration’ (in its many forms at all). Nor is it that “the results of a group effort will usually produce superior results to the efforts of skilled individuals.” There is a distinction between groups and networks that must be heeded if you want to understand things like ‘the wisdom of crowds’ at all.(13-11-2008)
O *suspiro* (sigh) de Downes demonstra bem o quanto esta dificuldade em percepcionar de forma clara os vários conceitos relacionados com as diversas formas de “colectivo” se tem arrastado ao longo dos anos. A noção de um certo colectivismo igualitário, que exalta as virtudes dos grupos e dos esforços colaborativos (entendidos numa perspectiva muito reducionista) e apaga as diferenças individuais, que Nantel critica na entrada acima referida, acabou por se disseminar em muitos círculos e tem merecido fortes reacções.
Num ensaio publicado no site da Edge Foundation, com o título sugestivamente polémico de DIGITAL MAOISM: The Hazards of the New Online Collectivism, Jaron Lanier (30-05-2006) desenvolve uma forte crítica a esta noção de colectivismo que, segundo ele, está a desumanizar a Web:
In the last year or two the trend has been to remove the scent of people, so as to come as close as possible to simulating the appearance of content emerging out of the Web as if it were speaking to us as a supernatural oracle.
A crítica de Lanier dirige-se, por um lado, à Wikipédia (àquilo de que ela é um exemplo de grande sucesso), i.e. ao facto de as entradas serem produzidas por um colectivo sem nome, apenas alcunhas (nicknames), ainda assim em relação aos quais se torna muito difícil identificar as contribuições individuais ou um princípio editorial. Para ele, um nome, uma “voz”, são o que dá contexto e reflecte uma personalidade, o que permite compreender de forma muito mais completa do que quando se está perante um texto anónimo, sem garantia de autenticidade e sem contexto. Outra crítica que Lanier avança tem a ver com os agregadores, relativamente aos quais, segundo ele, se tem assistido a uma corrida no sentido de “quanto maior melhor”, numa tentativa de conseguir atingir o maior “meta-agregador” possível. Escreve ele que
We now are reading what a collectivity algorithm derives from what other collectivity algorithms derived from what collectives chose from what a population of mostly amateur writers wrote anonymously. (30-05-2006)
Esta massa de escritores amadores, publicando anonimamente, faz com notícias triviais, roçando por vezes o ridículo ou o patético, soterrem as notícias realmente relevantes, escritas maioritariamente por escritores e editores profissionais devidamente identificados. O que Lanier parece não discutir aqui é que os utilizadores têm o poder de escolher os sítios que visitam ou em que participam. Para este autor, “the hive mind is for the most part stupid and boring. Why pay attention to it?” (op. cit.). O autor relaciona esta questão da atracção pelo colectivismo anónimo que, segundo ele, parece assolar a Internet, com a da Inteligência Artificial que, para alguns, poderia emergir (ou estar já mesmo presente) como uma entidade na Internet, o que Lanier considera errado e absurdo:
The beauty of the Internet is that it connects people. The value is in the other people. If we start to believe the Internet itself is an entity that has something to say, we’re devaluing those people and making ourselves into idiots. (op. cit.)
Assistimos, na sua perspectiva, a uma glorificação falaciosa do colectivo infalível, que leva a que as competências e capacidades individuais sejam sacrificadas à massa indistinta de um grupo que, em última análise, se torna normativa e opressora. Lanier reconhece existirem situações em que o colectivo pode ser mais competente do que um único indivíduo, que refere como instanciações da “sabedoria das multidões” (wisdom of crowds) [1]. Mas também existem muitos outros em que os colectivos funcionam mal e produzem resultados maus (as bolhas na Bolsa de valores, o bug do ano 2000 são dois dos exemplos que dá). No fundo, as situações em que um colectivo e os indivíduos revelam inteligência ou estupidez são diferentes, e é por isso que ambos são essenciais, segundo ele.
Kathy Sierra, numa entrada com um título também muito sugestivo, The “Dumbness of Crowds” (02-01-2007), tem uma abordagem menos radical a esta questão. Embora exaltando as virtudes do indivíduo (o exemplo dado é Steve Jobs, director executivo da Apple) face ao colectivo, tenta uma comparação mais sistemática entre as duas esferas.
Fig. 4 ”The Dumbness of Crowd”. Kathy Sierra (02-01-2007).
Focalizando a atenção nas interpretações erróneas que têm sido feitas do conceito de “sabedoria das multidões”, de Surowiecki, Kathy Sierra (02-01-2007) afirma que esta sabedoria não resulta de consensos ou esforços comuns, mas antes da agregação do conhecimento independente dos indivíduos:
It’s the sharp edges, gaps, and differences in individual knowledge that make the wisdom of crowds work.
Tendo aspectos meritórios, a verdade é que esta sua reflexão, quando avança para exemplos em que contrasta aquilo que passa a designar por “inteligência colectiva” (collective intelligence) e “a estupidez das multidões” (the dumbness of crowds), não evita cair ela própria em algumas confusões e mal-entendidos.
Vejamos como Pierre Lévy, um dos autores mais relevantes nesta área, define o conceito de “inteligência colectiva”: “
Collective intelligence” is defined as the capacity of human communities to co-operate intellectually in creation, innovation and invention. As our society becomes more and more knowledge-dependent, this collective ability becomes of fundamental importance. (Canada Research Chairs: Canada Research Chair in Collective Intelligence)[2]
Para este autor, a inteligência colectiva está presente nas sociedades animais, mas devido à linguagem, à técnica e às instituições complexas que caracterizam a espécie humana, atingiu com a humanidade uma dimensão totalmente diferente:
L’évolution culturelle humaine peut être considérée comme un lent processus de croissance de l’intelligence collective. (25-08-2003)
É por essa razão que se torna crucial para o sucesso das sociedades modernas compreender de que forma os processos de inteligência colectiva podem ser expandidos pelas redes digitais. Um aspecto comum destas novas formas de inteligência colectiva, segundo Lévy, é uma estrutura de comunicação “todos-para-todos”. O ciberespaço oferece, deste modo, instrumentos de construção cooperativa de um contexto comum a grupos não só numerosos, como também geograficamente dispersos (17-03-2002). Contudo, não se trata apenas da difusão ou distribuição de mensagens, mas sim de uma interacção que implica a negociação de significados e um processo de reconhecimento mútuo de indivíduos e de grupos numa situação de comunicação que cada um contribui para modificar ou estabilizar. O aspecto fundamental passa pela objectivação parcial do mundo virtual de significados dados à partilha e à reinterpretação dos participantes nestes dispositivos de comunicação de todos-para-todos. Esta objectivação dinâmica de um contexto colectivo é um operador da inteligência colectiva, uma espécie de consciência comum, uma subjectivação viva que reenvia para uma objectivação dinâmica: “L’objet commun suscite dialectiquement un sujet collectif” (op. cit.).
Howard Rheingold, na conferência gravada para as Ted Talks intitulada Way-new collaboration (02-2008), apresenta uma perspectiva em muitos aspectos próxima desta desenvolvida por Lévy. Do resumo/apresentação da conferência:
Howard Rheingold talks about the coming world of collaboration, participatory media and collective action – and how Wikipedia is really an outgrowth of our natural human instinct to work as a group.
Como vemos, estamos aqui longe das perspectivas muito negativas de Lanier quanto à cultura participatória e à Wikipédia, ou da noção de “inteligência colectiva” avançada por Kathy Sierra. Para Rheingold (02-2008), a visão tradicional da nossa evolução enquanto espécie baseada na competição e na sobrevivência dos mais aptos é apenas uma parte da história, porque ela não é só isso:
It’s a narrative spread across a number of different disciplines in which cooperation, collective action, and complex interdependencies play a more important role and the central, but not all important role of competition and survival of the fittest shrinks just a little bit to make room. (Rheingold, 02-2008: 1m 13s)
E nessa narrativa o autor vê uma relação interdependente, uma co-evolução, entre os meios de comunicação humanos (human communication media) e as formas como nos organizamos socialmente. Daí que, numa era em que são abundantes as tecnologias que permitem cooperar e partilhar, seja importante aprofundar essa acção colectiva que nos trouxe até aqui.
Agora que esclarecemos o conceito de “inteligência colectiva” no seu sentido original, poderemos, talvez, aprofundar e explicitar um pouco mais o de “sabedoria das multidões” (wisdom of crowds). Na sua análise da obra de Surowiecki, Jason Kottke (14-07-2004) sintetiza as quatro condições que têm que estar presentes, segundo o autor, para que o conceito se aplique:
1. Diversidade – Um grupo em que existam muitos pontos de vista distintos tomará melhores decisões do que outro em que todos têm a mesma informação.
2. Independência – As opiniões das pessoas não são determinadas pelos que as rodeiam.
3. Descentralização – Não há um local central onde resida o poder, e muitas das decisões importantes são tomadas por indivíduos com base no seu conhecimento local e específico.
4. Agregação – Torna-se necessário determinar, de alguma forma, a resposta do grupo a partir das respostas individuais dos seus membros. Esta parece ser a condição mais difícil de satisfazer, dado existirem muitas formas diferentes de agregar opiniões e de nem todas serem adequadas para uma situação particular.
Garantindo-se estas quatro condições, o resultado será que os erros possíveis na tomada de decisão (ou a maior parte deles, pelo menos) serão eliminados. Nas palavras de Surowiecki, citado por Kottke (14-07-2004):
If you ask a large enough group of diverse, independent people to make a prediction or estimate a probability, and then average those estimates, the errors of each of them makes in coming up with an answer will cancel themselves out. Each person’s guess, you might say, has two components: information and error. Subtract the error, and you’re left with the information.
Dave Snowden (06-11-2007), a partir de uma apresentação de Surowiecki sobre esta temática na mesma data, propõe um resumo que não se afasta muito do de Kottke, embora, desta vez, as condições essenciais para que uma multidão seja mais sábia (wiser) que qualquer dos seus membros individualmente sejam reduzidas a três:
1. Deve haver forma de agregar as respostas individuais para produzir um julgamento colectivo.
2. Tem que haver diversidade cognitiva no grupo.
3. Cada participante tem que tomar as suas decisões independentemente dos outros.
Para Snowden, e é essa contribuição que nos parece poder ajudar a clarificar o conceito um pouco mais, isto faz sentido porque
it links in with large number mathematics – assuming a chaotic system in which each agent is independent of the other, thus probability and statistical distributions work. (06-11-2007)
Como súmula final relativa a estes aspectos, recorramos a Henry Jenkins, Director do Programa de Estudos de Media Comparados do MIT e ao seu Collective Intelligence vs. The Wisdom of Crowds (27-11-2006). Nele, Jenkins procura clarificar as diferenças entre estes dois conceitos e fá-lo de uma forma que nos parece simples e eficaz. Relativamente à “inteligência colectiva” proposta por Lévy, escreve:
In the classic formulation, collective intelligence refers to a situation where nobody knows everything, everyone knows something, and what any given member knows is accessible to any other member upon request on an ad hoc basis. (Henry Jenkins, 27-11-2006)
Ou seja, o modelo de Lévy centra-se nos processos deliberativos que se desenvolvem nas comunidades online quando os participantes partilham informação, corrigem e avaliam as contribuições uns dos outros, e alcançam uma compreensão consensual. Já o modelo de Surowiecki procura agregar dados produzidos de forma anónima, emergindo a sabedoria (wisdom) quando um grande número de pessoas insere os seus cálculos sem que influenciem as contribuições uns dos outros. Em suma, escreve Jenkins,
The Wisdom of Crowds model focuses on isolated inputs: the Collective Intelligence model focuses on the process of knowledge production. The gradual refinement of the Wikipedia would be an example of collective intelligence at work. (27-11-2006)
Existem outras contribuições importantes para compreender estes fenómenos da colaboração e das várias formas como o individual e o colectivo se entrecruzam na Web, nomeadamente de Stephen Downes, com o seu artigo Groups vs Networks: The Class Struggle Continues (27-09-2006), ou de Terry Anderson, com On Groups, Networks and Collectives(30-04-2007) e, cerca de ano e meio depois, More on Groups versus Networks and Collectives (20-10-2008). Mas dado que se orientam mais para as questões da aprendizagem e são muito relevantes para vários dos aspectos que abordaremos posteriormente, trataremos dessas perspectivas na segunda parte.
Notas
[1] O exemplo avançado é o de uma espécie de ritual de iniciação que, segundo ele, é costume fazer-se com grupos de estudantes de economia. Pergunta-se a um grupo numeroso de estudantes quantos rebuçados estão dentro de um determinado pote e, embora os palpites individuais exibam grande variação, a média aproxima-se bastante do número exacto.
[2] A julgar pelo site The Canada Research Chair on Collective Intelligence at the University of Ottawa, em http://web.archive.org/web/20030401172932/www.collectiveintelligence.info/, este projecto de Pierre Lévy era ambicioso e de grande relevância, mas parece entretanto ter-se ficado pelas intenções iniciais.
Referências Bibliográficas
Anderson, Terry (20-10-2008). More on Groups versus Networks and Collectives. Virtual Canuck. Disponível em http://terrya.edublogs.org/2008/10/20/more-on-groups-versus-networks-and… [acedido em 15-12-2008].
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Canada Research Chairs (s/d). Disponível em http://www.chairs.gc.ca/web/chairholders/viewprofile_e.asp?id=584[acedido em 15-12-2008].
Downes, Stephen (13-11-2008). The (Lack Of) Wisdom of Crowds. OLDaily: Stephen’s Web. Disponível em http://www.downes.ca/cgi-bin/page.cgi?post=46932 [acedido em 15-12-2008].
Downes, Stephen (27-09-2006). Groups vs Networks: The Class Struggle Continues. Comunicação feita no âmbito da eFest, Wellington, Nova Zelândia. Transcrição, áudio e slides disponíveis em http://www.downes.ca/presentation/53 [acedido em 15-12-2008].
Jenkins, Henry (27-11-2006). Collective Intelligence vs. The Wisdom of Crowds. Confessions of an Aca-Fan. Disponível online em http://www.henryjenkins.org/2006/11/collective_intelligence_vs_the.html[acedido em15-12-2008).
Kottke, Jason (14-07-2004). Wisdom of Crowds, by James Surowiecki. Kottke.org. Disponível em http://kottke.org/04/07/wisdom-of-crowds[acedido em 15-12-2008].
Lanier, Jaron (30-05-2006). Digital Maoism: The Hazards of the New Online Collectivism. Edge. Disponível em http://www.edge.org/documents/archive/edge183.html [acedido em 15-12-2008].
Lévy, Pierre (25-08-2003). Entrevista ao JDN (Le Journal du Net). Disponível em http://www.journaldunet.com/itws/it_plevy.shtml [acedido em 15-12-2008].
Lévy, Pierre (17-03-2002). L’intelligence collective et ses objets. samizdat | biblioweb. Disponível em http://biblioweb.samizdat.net/article42.html[acedido em 15-12-2008].
Nantel, Richard (14-11-2008). The (Lack Of) Wisdom of Crowds. Brandon Hall Research: Analyzing Learning. Disponível em http://brandon-hall.com/richardnantel/2008/11/12/the-lack-of-wisdom-of-c… [acedido em 15-12-2008].
Rheingold, Howard (02-2008; filmado em 02-2005). [Vídeo]. Way-new collaboration. TED: Ideas worth spreading. Disponível em http://www.ted.com/index.php/talks/howard_rheingold_on_collaboration.html[acedido em 15-12-2008]. Vídeo e transcrição disponíveis em Martien van Steenbergen. http://martien.aardrock.com/2008/03/06/howard-rheingold-way-new-collabor… [acedido em 15-12-2008].
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