4.1. O Software Social e a Aprendizagem na Rede

Tentando compreender de que modo estas novas formas de colaboração emergentes podem ser aproveitadas e desenvolvidas, Martin Owen e outros investigadores do FutureLab (06-2006) publicaram, na nova série Open Education, um artigo extenso sobre a inter-relação entre duas tendências fundamentais que, a seu ver, estão a dominar a área das tecnologias na educação. Por um lado, no campo da educação, a ênfase crescente para ir além da mera aquisição de conhecimento e de informação e almejar o desenvolvimento dos recursos e competências necessários para aprendermos ao longo da vida. Por outro, no campo da tecnologia, a proliferação de tecnologias que permitem criar recursos e comunidades em que os indivíduos se juntam para aprender, colaborar e construir conhecimento.

Vêem os autores, na intersecção destas duas tendências, uma possível migração entre o e-learning e aquilo que designam como c-learning. Designe-se esta nova realidade como aprendizagem em comunidade (community learning), aprendizagem comunicativa (communicative learning) ou aprendizagem colaborativa (collaborative learning), na base da aprendizagem reside um processo social (Owen et al., 06-2006).

Na perspectiva de Jay Lemke (2002), citado pelos autores (op. cit.), a reengenharia da educação passa por analisar as formas como aprendemos “naturalmente” num cenário contemporâneo:

  • ler um livro ou navegar na web em busca de informação
  • pedir a um amigo ou a um perito que nos explique algo
  • experimentar coisas e tentar, a partir disso, tirar conclusões
  • juntar um grupo para encontrar a resposta para algo ou para para concretizar algo
  • observar como os outros fazem algo e tentar depois faze-lo nós próprios
  • explorar novos territórios, sozinhos ou acompanhados
  • falar com outras pessoas
  • escrever, desenhar, produzir diagramas, desenhos, filmes, música, multimédia
  • inventar novas coisas ou ideias por nós próprios
  • comparar ideias e experiências diferentes
  • perguntar porquê? como? de que outra forma?
  • todas estas formas em combinações várias

De um modo ou outro, todos estes aspectos requerem um envolvimento com outras pessoas, seja através do diálogo, seja através da interacção com as formas como elas transpuseram os seus pensamentos e perspectivas para diversos media. Deste ponto de vista, aprender é um processo de encontros e experiências rico e diversificado pois, como refere Lemke, “it takes a village to educate a child” (Lemke 2002, citado por Owen et al., 06-2006: 11).

As ferramentas que suportam e facilitam esta comunicação e interacção num contexto social têm a designação de software social (social software), termo que, segundo Owen et al. (op. cit.), terá sido cunhado em 2002 por Clay Shirky, escritor e professor interessado nas implicações sociais da tecnologia da Internet, e que designa, na sua definição simples, “software that supports group interaction” (Shirky 2003, citado por Owen et al., 06-2006: 12).

Para além de nos concentrarmos nas formas de aprendizagem que estão a aparecer, resultantes do enfoque por parte de organizações e educadores na criação de conhecimento, na colaboração e na prática como objectivos fundamentais, temos também, segundo os autores (Owen et al., 06-2006) que tentar identificar de que modo a introdução de tecnologias digitais permite novas abordagens à aprendizagem e à interacção social., num momento em que os jovens estão a desenvolver novos hábitos e uma nova cultura[1].

Os autores destacam nas transformações culturais e sociais em curso algumas temáticas, em seu entender, mais relevantes, a saber:

1. O repensar da Criatividade – com os consumidores a tornarem-se, de formas bastante fáceis, produtores, esta cultura crítica de consumo e remistura atenua acentuadamente a linha entre consumo e produção.

2. O repensar da Atenção – a informação que jorra abundante e ininterruptamente de várias fontes provoca em nós um estado de dispersão mental a que Linda Stone (2005; citada Owen et al., 10-2006) chamou “atenção parcial contínua” (continuous partial attention). Este estado parece decorrer de uma conectividade “sempre ligada” (always on) e manifestar-se de diversas formas como, por exemplo, a comunicação paralela que decorre entre membros da audiência – o back channel – através de chat, mensagens instantâneas, blogues, etc., característica em conferências ou encontros de tecnologias, e que complementa, ao mesmo tempo, a comunicação principal do orador – o fore channel.

3. O repensar do Espaço – é fácil aceitar a ideia de locais virtuais de encontro na cultura da Web. Estamos, por outro lado, a caminhar para um estádio em que as tecnologias cada vez mais disseminadas acabam por sobrepor ao espaço físico um manto de realidade aumentada (augmented reality).

4. O repensar da Identidade – existem dois aspectos fundamentais para a questão de como a adopção de práticas digitalmente ricas pode ter um impacto na nossa percepção de identidade: a construção da identidade através do consumo e da produção de media digitais e a interacção entre a nossa identidade real e a nossa identidade virtual.

Em certa medida, esta noção de conciliar as nossas identidades e acções no mundo virtual e no mundo físico (utilizamos esta formulação, que nos parece mais adequada do que a usada por Owen et al., de “real”) é uma das preocupações centrais no artigo A Nomad’s Guide to Learning and Social Software, de Ulises Mejias (10-2005).

Reflectindo sobre o papel do software social nos novos modelos de aprendizagem e de participação na sociedade, Mejias considera que, para além de permitirem a conexão dos aprendentes a recursos e entre si de novos modos, o verdadeiro potencial destas ferramentas reside no facto de nos permitirem compreender as melhores formas de integramos as nossas experiências sociais online e offline. Para fazer jus ao seu nome, o software social deve ser capaz de conciliar e articular as práticas sociais quotidianas dos indivíduos, que incluem a interacção com pessoas online mas, também, com outras que não têm acesso a estas tecnologias.

Por outro lado, a relação entre as tecnologias e a aprendizagem nem sempre tem sido uma relação produtiva ou resultado em inovação. Com frequência, a adopção de novas tecnologias na educação tem-se orientado para a reprodução de velhas fórmulas e métodos, agora desenvolvidos com novas ferramentas, mas em que nada de substancial muda. Ora, o verdadeiro sentido da utilização de novas ferramentas, aquilo que torna a sua adopção um desafio interessante e fecundo, é questionar os princípios pedagógicos sobre os quais assentam os modelos educativos para provocar mudanças significativas.

De acordo com Mejias (op. cit.), os modelos de aprendizagem baseados no software social podem facilitar a evolução daquilo a que Brown & Duguid (2000) chamavam “aprender sobre” (learning about) para um “aprender a ser” (learning to be), ou, numa formulação que o autor refere ter uma conotação mais deleuziana, para um “aprender como devir” (learning as becoming).

O software social poderia, assim, ter um impacto positivo na pedagogia, ao instilar um desejo de nos ligarmos ao mundo como um todo, e não apenas às partes sociais que existem online.

Num comentário[2] na página onde Stephen Downes disponibiliza a sua apresentação (áudio e Slides) Goups vs Networks (29-09-2006), Mejias refere o artigo de Barry Wellman, de 2001, Little Boxes, Glocalization, and Networked Individualism, como uma boa introdução para as questões relativas às formas de socialização e ao modo como têm vindo a mudar com as tecnologias. Na verdade, o texto de Wellman constitui uma base comum interessante entre os aspectos que aqui abordámos, a propósito de Owen et al. e de Mejias, e os relativos ao Conectivismo e ao Conhecimento Conectivo, que trataremos em seguida.

Nesse texto, Wellman (2001) reflecte sobre como as comunidades humanas evoluíram de

densely-knit “Little Boxes” (densely-knit, linking people door-to-door) to “Glocalized” [3] networks (sparsely knit but with clusters, linking households both locally and globally) to “Networked Individualism” (sparsely-knit, linking individuals with little regard to space) (do abstract).

As “pequenas caixas” são uma metáfora para as pessoas social e cognitivamente encapsuladas em grupos homogéneos alargados. Os membros das sociedades que se organizam deste modo lidam sobretudo com os seus congéneres dos grupos a que pertencem: em casa, no bairro, no trabalho ou em organizações voluntárias. É frequente estes grupos possuírem limites para a inclusão neles e uma organização estruturada e hierárquica: supervisores e empregados, pais e filhos, padres e crentes, executivos organizacionais e membros. Numa sociedade deste tipo, cada interacção acontece no seu local próprio, um grupo de cada vez.

Nas sociedades em rede (networked societies), por outro lado, o trabalho, a comunidade, a domesticidade evoluíram de grupos hierárquicos, densamente interligados e confinados (as “pequenas caixas”), para redes sociais. As fronteiras são mais permeáveis, as interacções mais diversificadas, as ligações distribuem-se por diversas redes, as hierarquias são mais planas e de estrutura mais complexa.

Em vez de se acomodar ao grupo daqueles que o rodeiam, o indivíduo constrói a sua própria rede pessoal. A maior parte das pessoas funciona em múltiplas comunidades parciais, à medida que lidam com redes amorfas e em constante reconfiguração de parentes, vizinhos, amigos, colegas e laços organizacionais. As suas actividades e as suas relações têm um carácter informal, não sendo estruturadas organizacionalmente.

Apenas uma pequena minoria de membros da rede estão directamente conectados uns com os outros. Não vivemos nos mesmos bairros da maior parte dos nossos amigos ou parentes, frequentemente nem sequer na mesma área metropolitana, e muitas vezes trabalhamos não com as pessoas que estão sentadas ao pé de nós no local de trabalho, mas com outras em locais distantes. É por isso que, segundo Wellman, “[t]his is a time for individuals and their networks, and not for groups” (op. cit.: 2).

O individualismo em rede (networked individualism) resulta da confluência do desenvolvimento tecnológico das redes de comunicações por computador e do florescimento de redes sociais. Nas palavras do autor:

Just as the flexibility of less-bounded, spatially dispersed, social networks creates demand for collaborative communication and information sharing, the rapid development of computer-communications networks nourishes societal transitions from little boxes to social networks. (op. cit.: 2)

No trabalho ou na comunidade, a conectividade “glocalizada” fornece sistemas fluidos que permitem a utilização de redes ramificadas para aceder a recursos materiais, cognitivos e outros. Os indivíduos não são já identificados como membros de um grupo único, antes podem alternar entre diversas redes, o que lhes permite mobilizar recursos de uma rede para outra através das suas ligações. Saber como criar redes (online e offline) torna-se um recurso humano fundamental, e ter uma rede de apoio torna-se um capital social de grande relevância.

De acordo com Wellman (op. cit.), assistia-se na passagem para o terceiro milénio a uma nova transição, desta vez de uma conectividade lugar-a-lugar (que marcava o período da “glocalização”) para uma conectividade pessoa-a-pessoa. Os dispositivos móveis e as redes sem fios, entre outros elementos, tornaram as pessoa cada vez menos dependentes de um local físico específico:

Because connections are to people and not to places, the technology affords shifting of work and community ties from linking people-in-places to linking people wherever they are. It is I-alone that is reachable wherever I am: at a house, hotel, office, freeway or mall. The person has become the portal. (op. cit.: 5)

O grau de envolvimento e participação nas diversas redes varia com os momentos, os objectivos, as circunstâncias: muito activos numas, mais passivos noutras, observadores silenciosos noutras ainda. Na busca de informação através destas redes, nem sempre são os laços mais fortes (strong ties) que nos podem ajudar. Bem pelo contrário, até, no caso de informação nova: dado que os indivíduos com laços fortes têm maior probabilidade de se assemelhar socialmente e de conhecer as mesmas pessoas, é possível que possuam a mesma informação. A nova informação virá, presumivelmente, dos laços fracos (weak ties), que estão melhor conectados a outros círculos sociais mais diversos (Wellman, 2001; Siemens, 12-12-2004). Deste modo, segundo Wellman (op. cit.), é importante desenvolver ferramentas que permitam analisar relações interpessoais de confiança para identificar, localizar e receber informação dentro das organizações e entre elas.

Tal como Owen et al. (06-2006) e Mejias (10-2005), também Wellman (2001) considera ser necessário ultrapassar a falsa dicotomia entre o ciber-espaço e o mundo físico. Muitas ligações operam, frequentemente, em ambas as dimensões, funcionando os contactos online como suplemento ou complemento de encontros e relações presenciais, e não como pura substituição. Muitas pessoas comunicam com os seus amigos, parentes, vizinhos ou colegas utilizando o meio online ou offline que está disponível e se afigura, naquela circunstância, mais conveniente ou adequado. Quanto mais fortes são os laços, mais media são usados (Wellman, op. cit.).

 

Notas

[1]Os autores designam esta “nova cultura” como “cibercultura”. Como procurámos demonstrar na Parte I, a cibercultura e a cultura digitais têm raízes mais distantes e mais profundas, embebidas no ADN da própria Internet e da World Wide Web. Para uma breve panorâmica sobre o conceito, consultar Aelan Biruar Arumpac (2006). A Research Paper on Cyberculture and Virtual Politics. Asia Culture Forum 2006. Disponível em http://www.cct.go.kr/data/acf2006/aycc/aycc_0805_Aelan%20Biruar%20Arumpac.pdf [acedido em 15-12-2008]

[2]Disponível em http://www.downes.ca/cgi-bin/page.cgi?post=35885 [acedido em 15-12-2008].

[3]“Glocalization” is a neologism meaning the combination of intense local and extensive global interaction. (Barry Wellman, 2001: 3)

Referências Bibliográficas

Brown, John Seely & Duguid, Paul (2000). The Social Life of Information. Cambridge, MA: Harvard Business School Publishing.

Downes, Stephen (27-09-2006). Groups vs Networks: The Class Struggle Continues. Comunicação feita no âmbito da eFest, Wellington, Nova Zelândia. Transcrição, áudio e slides disponíveis em http://www.downes.ca/presentation/53 [acedido em 15-12-2008].

Mejias, Ulises (10-2005). A Nomad’s Guide to Learning and Social Software. The Knowledge Tree: An e-journal of learning innovation, ed. 7. Disponível em http://knowledgetree.flexiblelearning.net.au/edition07/html/la_mejias.html [acedido em 15-12-2008].

Owen, Martin; Grant, Lyndsay; Sayers, Steve; & Facer, Keri (06-2006). Social Software and Learning. Futurelab. Disponível em http://www.futurelab.org.uk/resources/documents/opening_education/Soci_S… [acedido a 15-12-2008].

Siemens, George (12-12-2004). Connectivism: A Learning Theory for the Digital Age. elearnspace. Disponível em http://www.elearnspace.org/Articles/connectivism.htm [acedido em 15-12-2008].

Wellman, Barry (2001). Little Boxes, Glocalization, and Networked Individualism. Lecture Notes In Computer Science, Vol. 2362. Second Kyoto Workshop on Digital Cities II, Computational and Sociological Approaches. Disponível em http://www.chass.utoronto.ca/~wellman/publications/littleboxes/ littlebox.PDF [acedido em 15-12-2008].