É frequente falar-se de como alguns princípios teóricos correctos e muito recomendáveis em educação podem ser mal aplicados, resultando daí que, em vez de promoverem os benefícios que se espera na aprendizagem, acabem por produzir exactamente o efeito contrário, ou seja, dificultam em vez de facilitarem.
Ontem tive um exemplo prático (e cómico) deste problema. Não costumo ajudar o meu filho, agora no 4º ano, a fazer os trabalhos de casa, porque ele não tem precisado, mas desta vez ouvi um “Ó Pai, anda cá que eu preciso da tua ajuda” que revelava perplexidade. Lá fui. O trabalho era responder a umas perguntas sobre números ordinais, nada de muito complexo. Na página da esquerda os ditos, na da direita a situação-problema a partir da qual deviam ser feitos os exercícios. Em teoria, tudo estava feito segundo princípios didácticos correctos, e com os quais concordo – contextualizar a tarefa num universo próximo do aluno, procurar situá-la num contexto verosímil, dar um sentido prático ao problema apresentado, etc., de modo a evitar a aprendizagem mecânica e a promover uma aprendizagem significativa. Na prática, contudo, as coisas resultavam diferentes.
A situação problema era a seguinte: uma escola vai levar os seus alunos a uma visita de estudo. 24 estão já dentro do veículo que vai transportá-los, e cá fora há uma fila à espera de entrar. Olhando para a imagem, vê-se um avião na pista e uma fila de alunos e alguns professores junto ao mesmo. Lá se foi a verosimilhança, de mais do que uma maneira. Depois, as perguntas: “em que lugar está a menina de verde?” “Em que lugar está o 1º adulto”, etc. Até aqui tudo bem.
Depois vinham as difíceis: “em que lugar está a última menina de tranças?” Mmm…, só consigo ver uma, filho. Ó pai, é esta. Não, filho, essa tem um rabo de cavalo, não é uma trança. Então é esta aqui. Não filho, essa tem puxinhos. Puxinhos, pai, o que é isso? Lá expliquei. Mas ó pai, se dizem “a última menina que tem tranças” é porque há mais do que uma. Tens razão, é bem pensado. Mas só uma é que tem tranças. O que é que fazemos? Olha, vou pôr a dos puchinhos, que é o mais parecido, e logo se vê. Ok.
Próxima pergunta: “em que lugar está o menino na cadeira de rodas?” Ó pai, isto não está bem. Porquê, filho? Qual é o problema? Então, se o menino está numa cadeira de rodas deviam tê-lo deixado entrar primeiro, não era porem-no ali na fila à espera. Não achas? Acho filho, também me parece que teria sido o mais correcto.
E ainda: “o aluno em trigésimo quinto lugar é um menino ou uma menina?” Ó pai, o que é que achas? Eu sei que é este, mas não consigo perceber se é menino ou menina. Mmm… deixa ver. Tem calças, será um menino? Isso não quer dizer nada pai, há aqui uns que se vê bem que são meninas e têm calças. Pois… o que te parece? Bem, pai, tem o cabelo um bocado comprido e a cara redonda, pode ser uma menina, mas por outro lado tem assim um corpo que parece mais um rapaz. O que é que eu ponho? Olha, põe rapaz e depois perguntas à professora o que é que ela acha.
Bem, em vez dos números ordinais propriamente ditos, coisa que não suscitava quaisquer dificuldades, passámos o tempo a falar de maneiras de apanhar o cabelo, da consideração especial que se deve ter para com as pessoas com deficiência ou em situação de fragilidade física, e dos esterótipos associados a rapazes e raparigas. Não devia ser preciso tanta substância sociocultural para um simples exercício com números ordinais. Ainda por cima, quando por via disso várias perguntas não tinham um resposta claramente correcta.
Olá José
Eu creio que alguns educadores (e autores de manuais) se esquecem que também há pensamento abstracto. Para eles tudo tem que ser muito concretinho… Parece que o objectivo é a infantilização…
[] João
Um dos insultos que eu gostava de chamar aos broncos quando tinha 9 anos era “despenteado mental” acho que é um bom eufemismo para esse exercício.