Apesar do ainda muito trabalho, já vai dando para ler alguma coisa. Bela surpresa “A Pianista”, de Elfriede Jelinek (Edições ASA). Não conhecia esta Nobel da Literatura em 2004 (o que não espanta, dada a imensidão de coisas mesmo muito relevantes que desconheço), mas este romance parece ser a corporização exacta das razões por que o prémio lhe foi atribuído:
for her musical flow of voices and counter-voices in novels and plays that with extraordinary linguistic zeal reveal the absurdity of society’s clichés and their subjugating power
sobretudo a parte que se refere ao “extraordinary linguistic zeal”, algo que a excelente tradução de Aires Graça verte num Português magnífico. Um prazer imenso para quem gosta de, para lá de personagens e peripécias, apreciar a língua num esplendor pouco comum. Se calhar este artigo do tradutor explica porque é que ele fez um trabalho que merecia, só por si, um prémio literário.
Tanta sorte não teve Tom Wolfe. Não sei se é um grande escritor ou não, sei que vende muito e é uma personalidade importante no meio jornalístico e literário americano, o que já é obra. Li dele a “Fogueira das Vaidades” e gostei muito, desta vez estou em inícios do badalado “Eu sou a Charlotte Simmons” (não sou eu, é ele), e a tradução é daquelas que nos dá vontade de bater no nome impresso onde diz: “Tradução de Maria João Delgado” até ver a formulação mudar para “Assassinado por” ou “Tornado irremediavelmente patético por”, etc. Às recentes expressões de “assassínio político” e “assassínio de personalidade” devia juntar-se outra, “assassínio literário”. Nem sei se a MJD é má tradutora ou não, talvez esteja apenas a navegar em águas desconhecidas, e nesse caso o seu pecado será o da inconsciência e o de uma ética profissional descontraída.
Tudo o que se relaciona com basquetebol – que na parte lida até agora tem aparição substancial – é inenarravelmente vertido em formato destrambelhado para Português. A MJD inventou um novo desporto, vagamente parecido com o existente, mas em que tudo o que é típico dele é formulado numa terminologia inventada pela tradutora que, como é evidente, também dá para rir às gargalhadas, porque nem todos os dias estamos para nos indignar. Como é que alguém pode pôr-se a traduzir terminologia de uma área que desconhece e, em vez de tentar informar-se, acha melhor ideia improvisar com a sua ignorância é algo difícil de compreender com um autor destes e uma editora destas.
A Caminho, que a editar coisas destas bem podia chamar-se “Descaminho”, sempre batia mais a bota com a perdigota, tem a obrigação de salvaguardar-se destes episódios, assegurando que quem traduz sabe minimamente o que faz, ou arranjando supervisão que não deixe isto acontecer. No mínimo, os leitores deviam poder levar o calhamaço à Caminho, bater com ele na cabeça do editor e receber o dinheiro de volta.
Para acabar bem, como comecei, uma última referência para Daniel Pennac e o seu “Mágoas da Escola“ (Porto Editora), o relato autobiográfico de um cábula para quem a escola foi, durante quase todo o tempo, um martírio, e acabou por encontrar o seu caminho e tornar-se um professor consciencioso e empenhado. Leitura imprescindível para quem queira compreender a escola, o ser aluno, sobretudo o ser professor, numa altura em que sobre estas questões somos inundados de inanidades a um ritmo insuportável.