Encontrei, via o blog De Rerum Natura (vale a pena seguir), um artigo do escritor brasileiro Cristóvão Tezza intitulado “Traduzindo português“. Começando pelo fim, para aguçar o apetite para uma leitura que me parece valer a pena, apresento a sua proposta, por ele qualificada de “herética”:
que nossa prosa contemporânea seja traduzida em edições no outro país. Não apenas no vocabulário acidental, mas na estrutura sintática mesmo, como se nós escrevêssemos em croata, e eles, em turco. Se meu livro, escrito em brasileiro, pode ser traduzido para o catalão, porque não para o português?
Basta olhar para os exemplos que ele dá de construções frásicas que lhe causam estranheza, retirados da tradução do último livro de David Lodge, A Vida em Surdina (Deaf Sentence, no original), para percebermos o quanto uma língua aparentemente comum nos separa de modo tão evidente: lêem-se e relêem-se as frases e não se consegue lá encontrar nada de estranho, tudo soa natural. E no entanto … A verdade é que tenho que concordar parcialmente com ele. Mesmo nas boas traduções em Português do Brasil a língua é sempre um factor de distanciamento, há uma espécie de consciência permanente da tradução, uma segunda camada que recobre o texto original e impede, de certo modo, que mergulhemos na sua substância. Muito bom para leituras de trabalho e análise, este distanciamento, mas claramente um factor negativo para a fruição dos textos.
Neste particular, contudo, sou um pouco mais específico do que Tezza: não me faz confusão nenhuma ler os brasileiros no original. As diferenças e especificidades fazem parte da própria expressão artística, acrescentam contexto e tornam mais poderosa a ilusão de verosimilhança e autenticidade. Assim, o meu desconforto vai mesmo é para as traduções, que só consigo ler sem engulhos em Português de Portugal. Já que estamos numa de heresias, jamais fui capaz de ler o Ulisses, de James Joyce, traduzido pelo Houaiss, por maior que fosse a genialidade da reescrita anunciada por muitos, e na qual acredito: era uma língua parecida com a minha, mas não era a minha língua (já descontando o facto de a obra ser, em sim mesma, razoavelmente estranha, também muito experimental em termos linguísticos).
Nestas coisas, o Inglês vem sempre à baila, sendo uma língua historicamente com tantas variantes, nas últimas décadas transformada em língua global, em que nunca houve grandes necessidades de acordos ortográficos nem grandes discussões em torno de uniformizações. Como é algo que me causa muita curiosidade, perguntei no Twitter como é que os falantes de língua inglesa se sentem com as traduções numa variante de Inglês que não é a sua, mas acho que precisava de ter uma rede maior para conseguir ter algumas respostas significativas.