Autor: José Mota
Data: Jan 9 2006 5:54:PM
Assunto: As teorias e as práticas de ensino
Havendo já várias sínteses, globais ou parciais, muito úteis e, na minha perspectiva, bem elaboradas, a minha contribuição centra-se mais na questão das práticas de ensino, ou seja, na perspectiva do professor.
Basta a leitura do documento proposto para se perceber que, se há crise na escola e na educação (e parece que este é o estado crónico há muito tempo), ela não se deve, certamente, à falta de reflexão e produção teórica nos mais diversos campos que sobre elas se debruçam. Mas onde deve o professor colocar-se face a essa produção teórica? Em meu entender, não é muito relevante, descontando as idiossincrasias ou interesses particulares, que um professor desenvolva grandes conhecimentos teóricos na área da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia, etc., ligadas à Educação, não só pela dimensão e dificuldade da tarefa, mas porque a Pedagogia, nas várias perspectivas que oferece, representa já uma síntese integradora das contribuições de áreas muito diversificadas, propondo modelos de actuação que procuram ser completos em si mesmos e estão já muito direccionados para uma operacionalização prática.
Até porque o professor tem, face aos modelos pedagógicos que têm sido sucessivamente propostos, ainda muito trabalho a fazer até chegar à prática concreta de ensinar. Tem, sobretudo, que escolher: primeiro, a abordagem global que vai mais de encontro às suas próprias ideias sobre o papel da escola e ao fenómeno da aprendizagem, sem esquecer as suas características e competências pessoais; depois, e em vários momentos, quais as práticas mais adequadas às circunstâncias em que decorre o ensino e a aprendizagem – alunos, contexto, conteúdos, etc. – acreditando, como creio ser mais ou menos pacífico, que não há modelos que sejam bons ou maus em absoluto, mas sim que há uns mais adequados e mais eficientes do que outros tendo em conta circunstâncias específicas.
Socorro-me, aqui, de uma citação de Arends presente no texto, e que me pode ajudar a clarificar a perspectiva que tenho do trabalho do professor (embora não tenha assim tanto a certeza quanto ao facto de a arte de ensinar não ter a ver com a criação da beleza, num certo sentido):
“A arte de ensinar é uma arte instrumental ou prática e não uma das belas-artes que tem como objectivo último a criação da beleza. Enquanto arte instrumental, o ensino é algo que se afasta de receitas, fórmulas ou algoritmos. Requer improvisação, espontaneidade, o lidar com múltiplas possibilidades relativas à forma, ao estilo, à cadência, ao ritmo e à adequabilidade de modos tão complexos” (Arends, 1995:1).
Ao contrário das produções teóricas formais, incluindo as da Pedagogia, que se constituem basicamente pela diferença e pela exclusão (cada uma pretende constituir-se como visão global, completa, e diferente das outras), a acção do professor constitui-se a partir da amálgama que vai construindo a partir de elementos e aspectos que nas várias abordagens lhe vão úteis ao trabalho que quer desenvolver, combinando, adaptando e reconciliando numa visão integradora aquilo que, nas suas versões puras, é frequentemente apresentado como contraditório ou conflituante. Assim, a fundamentação teórica da prática de um professor passará, sobretudo, por conhecer as abordagens pedagógicas mais representativas, tendo consciência dos seus pontos fortes e das suas limitações, ou seja, sabendo o que quer conseguir e o que pode esperar quando utiliza uma determinada abordagem em vez de outra, tendo em conta as aprendizagens que quer promover, o tempo de que dispõe, as características dos seus alunos, etc., de modo a que a improvisação, a espontaneidade ou essa amálgama de que falo não redundem num total desnorte e numa prática a muitos títulos caótica.
O pensamento sobre a educação, como resulta claro da vasta panorâmica que o artigo apresenta, acompanhou a evolução das ideias relativamente aos indivíduos e à sociedade, seja ao nível filosófico, político-económico ou sociológico: do Iluminismo e da crença na Razão à Revolução Industrial e ao estabelecimento do pensamento científico, fundadas na certeza do progresso e do conhecimento; da crise que o Modernismo exprimiu, recuperando muito do pensamento romântico e estilhaçando as visões clássicas do ser uno e das verdades universais, às perspectivas estruturalistas, que acreditavam utopicamente poder reconstituir as certezas conferindo uma espécie de “cientificidade” a todas as áreas do saber, através da elaboração da “gramática” relativa a cada uma delas, derivada do modelo da linguagem; da visão existencialista e humanista à angústia pós-moderna da fragmentaridade e da transitoriedade, e à sua natureza relativista e combinatória. Neste percurso, o pêndulo foi oscilando entre alguns binómios relativos à perspectiva sobre a sociedade, ao papel da escola, aos indivíduos e à aprendizagem: pendor mais individualista ou mais colectivo/social; ênfase mais no inato ou no adquirido, i.e. perspectivas mais biológicas ou mais culturais do ser humano; uma escola mais promotora do desenvolvimento pessoal ou mais virada para a qualificação de uma força de trabalho produtiva; uma visão da aprendizagem mais como o absorver de um património de saber acumulado e a reprodução de práticas e comportamentos ou como o desenvolver de competências e conhecimentos que permitam a acção autónoma e criativa no mundo, dando especial relevo ao pensamento crítico e à inovação.
Hoje, de uma forma ou de outra, a herança de todos os discursos sobre a educação e a aprendizagem coexistem na escola pós-moderna, seja ao nível das políticas, dos desenhos curriculares, dos programas e respectivas orientações metodológicas, ou das práticas pedagógicas dos professores. É precisamente dessa coexistência, não isenta de contradições, que emergem algumas das dificuldades da escola actual em definir claramente o seu papel e a sua actuação. Com a agravante adicional de muitas das tarefas e responsabilidades até há pouco tempo distribuídas por vários sectores e agentes da sociedade no respeita à educação e à formação de crianças e jovens estarem a ser, cada vez mais, transferidas para a escola, ainda organizada segundo um modelo que, em muitos aspectos, não difere muito do que tinha na sociedade industrial.
Num cenário deste tipo, penso que cabe ao professor ser, sobretudo, um encenador que, face a cada peça, escolhe a linguagem ou linguagens adequadas à sua natureza, às características dos actores de que dispõe e ao público a que esta se destina, e não o discípulo fiel de uma qualquer abordagem à qual tenta moldar todas as realidades com que interage. Como disse já, isso implica, naturalmente, ter uma cultura pedagógica adequada; mas implica, também, aquilo de que sempre se fala muito pouco, que é um projecto de desenvolvimento pessoal que passe por uma reflexão constante sobre as suas práticas e as suas crenças, e a capacidade para utilizar a sua experiência como fonte de conhecimento e de aperfeiçoamento.
Fica, certamente, muito por dizer, nomeadamente, por exemplo, se não terá chegado a altura de desfazer aquele binómio que se transformou num enorme cliché, e dá pelo nome de “processo de ensino-aprendizagem”. Mas dado o tamanho em que isto já vai, fica para outra oportunidade 🙂