Não sabendo bem explicar porquê, quando comecei a pensar nesta problemática que o professor nos coloca (sobre o texto/sobre a sociedade em rede/sobre a educação), nas diversas interacções que os seus intervenientes estabelecem, fui lembrar-me de um livro, ou melhor, um pequeno texto de Raul Brandão (O Senhor Custódio), o qual me fez pensar bastante nesta questão da postura do indivíduo perante o que nos rodeia (seja isto o mundo ou a Net, as estradas, os livros, as vias de comunicação, as tecnologias, o saber) e daquilo que podemos retirar de proveitoso do mundo para nós e para os outros e, fundamentalmente, para as nossas vidas. E o texto versa assim:
O Custódio era um negociante da nossa praça (Porto), que foi amigo de meu pai e que só conheci na velhice. Tipo baixo, trigueiro, de barba de passa-piolho, rico um dia, pobre no outro, e que parecia indiferente à vida e ao dinheiro. Com isto extremamente bondoso. A nota característica da sua vida seria esta: não era a fortuna que ele procurava no negócio – era a agitação.
Não parava nunca, nem quando tinha cem contos, nem quando estava completamente arruinado – porque a sua vida foi uma linha com altos e baixos repentinos que surpreendia e maravilhava toda a gente.
E também não havia trambolhão que o arrancasse a uma placidez que parecia indiferença. Tinha o seu escritório, quando o conheci, na Praça de D. Pedro, mas a bem dizer o seu escritório era o país inteiro, porque nunca se encontrava em casa.
Ninguém sabia dele, nem a família nem os amigos. Saía sem vintém, com um par de meias no bolso e estava de volta, quando estava, passado um mês. Percorria a província em negócios. Já os condutores do comboio, que não pagava, lhe não pediam o bilhete. Era o Custódio.
Viajava sempre em terceira classe, falando pouco e absorto não sei em que planos irrealizáveis e absurdos. Todos os estalajadeiros lhe sabiam o nome e fiavam dele. – É o senhor Custódio. – Todos os almocreves, todos os grandes e pequenos negociantes da província e do Porto conheciam aquele homem honrado, que depois mandava pagar todas as suas contas.
Duma vez não houve em casa notícias dele durante três meses inteiros.
Foi uma aflição. Veio-se a saber mais tarde que tinha ido ao Brasil, com o mesmo par de meias na algibeira e a mesma soberana indiferença, para realizar uns negócios que só ele conhecia, e que no Rio de Janeiro, como em Portugal, encontrara amigos, consideração, simpatia: – Olhem quem ele é, o Custódio!…
Como era um homem de bem e um homem de coração, acabou naturalmente pobre, o que não lhe deve ter pesado nada, porque, a bem dizer, o fim da sua vida não foi juntar dinheiro, mas correr mundo, planear empresas, discutir letras, assinar contratos, e sonhar, sobretudo sonhar.
A bem dizer cuido que o Custódio foi um grande poeta.
O problema que temos em mãos quando falamos de educação é afinal uma questão: educar para quê? Ou seja, precisamos de nos colocar uma questão primordial: que finalidade queremos ver cumprida com a educação?
Creio que podemos hoje pensar este boom das NTIC como há séculos atrás o surgimento de livros impressos – relativizado o impacto social que hoje todas as grandes mudanças têm, pela rapidez de penetração e implementação que globalmente conseguem.
O texto A Educação na Sociedade em Rede estabelece genericamente o confronto entre escola tradicional e novas tecnologias de comunicação (mais concretamente as que se alicerçam na Internet).
Conviria, primeiro, desmistificar o conceito de escola tradicional quando falamos deste conceito aplicado à Escola que hoje temos no nosso país. É frequente partir-se para esta definição como se uma espécie de nevoeiro nos impedisse de ver tudo o que mudou desde a década de sessenta, com as reformas de Veiga Simão, até à actualidade, onde a catadupa de reformas não chega sequer a fazer escola.
Se imaginarmos escola tradicional como a que temos hoje, parece-me que já não podemos falar de escola, mas antes de escolas, ou mesmo de uma escola que é muitas escolas num mesmo corpo arquitectónico, na medida em que já conseguimos encontrar contextos diversificados de escola para escola e até dentro de uma mesma escola.
A ideia de que a escola tradicional se encontra presa a praxis que caracterizaram os processos de ensino antes das reformas de Veiga Simão é uma ideia totalmente desfasada da realidade; e não é esse, de facto, o problema da educação hoje em Portugal. Aliás, esta postura tem-nos sistematicamente impedido de ver mais fundo nos problemas do nosso sistema educativo.
E assim, tal como temos encarado esta situação de ânimo tão leve e pouco profissional, também tendemos a deixar-nos ofuscar com as novidades que vão surgindo – entre as quais as NTIC são certamente as mais atractivas.
Pretender-se que tudo ou quase tudo do que hoje se não consegue tirar da Escola se deve essencialmente a processos de comunicação alicerçados numa cultura ensinante “orografa” é ignorar claramente o que se passa no terreno.
Hoje, nas nossas escolas, não são os problemas de “ensinaprendizagem” que impedem o sucesso. Cada vez mais, e se quisermos encarar de forma séria esta questão, podemos encontrar respostas para o insucesso num problema maior e que respeita inteiramente a “Gestão da Educação”. Mega gestão e micro gestão. Digamos que há que olhar para a Educação com uma visão estrutural, radical (na verdadeira acepção da palavra) que nos leve a perceber que é a rede de suporte básico que está desde há muito falhando e não os impulsos que nela vão existindo.
Evidentemente que é mais fácil (porque mais visível) perceber estes problemas através das suas consequências. Porém, interessa analisar as causas, a origem do caos que neste sistema se instalou e que deteriora dia a dia as relações entre todos os agentes que nele operam.
Tratarmos das questões da Educação em Rede – ou da Educação na Sociedade em Rede – é um exercício possível, mas não devemos confundir esta abordagem educativa com o oásis no deserto que atravessamos.
Podemos discutir aqui se a Escola não está a resultar porque a Sociedade está em crise, sem valores, com outros valores, ou com uma confusão deles; ou porque a velocidade a que as mudanças tecnológicas e científicas se processam não permite uma equivalência de mudanças sociais, económicas, políticas e culturais; ou porque os meios e os contextos comunicativos da Escola estão desfasados com os da Sociedade; ou porque… ou porque…
Tenho para mim que a educação em rede é, na essência, um conceito pouco inovador em Educação (sempre houve necessidade de laços e estratégias de interacção entre os intervenientes da educação, com a velocidade e a multiplicidade que os contextos comunicacionais possibilitavam).
Aquilo que os meios de comunicação hoje nos permitem é sobretudo velocidade e facilidade de acesso (o processo torna-se doméstico); mas, também uma auto-estrada significa relativamente o mesmo se comparada a uma rota seguida por navegadores do século XV ou XVI.
Pretendermos que porque chegamos mais rápido, e muitos mais, isso nos vai levar a um melhor destino é um equívoco que me parece dispensável. Continuo a entender que conviria perceber primeiro onde queremos chegar.
Porque nem sempre o nosso destino precisa de grandes distâncias ou de veículos especiais.
E é nesta nuance que a Educação se deve jogar: onde/como queremos ir?
O Senhor Custódio percorreu mundo, dentro e fora de si, e era feliz com os destinos que escolhia…
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