Data: Feb 8 2006 10:06:PM
Assunto: Re:Ponto de Vista
Junto aqui outra citação do Lévy, que aparece no final do ponto “Indeterminação e Ambiguidade na Informática” (pág. 150):
É sempre possível lamentar «o declínio da cultura geral», o pretenso «barbarisamo» tecnocientífico ou a «derrota do pensamento», sendo infelizmente cultura e pensamento cristalizados numa pseudo-essência que não passa de uma imagem idealizada dos bons velhos tempos. É mais difícil, mas também mais útil, aprender o real que está a nascer, torná-lo consciente de si mesmo, acompanhar e guiar os seus movimentos, de maneira a que venham à tona as suas potencialidades mais positivas (p. 150)
Como seres com tendência (quase obsessiva, diga-se a verdade) para controlarmos o que nos rodeia, somos mais naturalmente inclinados à conservação do que à mudança, genericamente falando.
Mesmo quando as mudanças são naturais – as que se verificam de geração para geração – há sempre este sentimento de que se estão a perder valores e saberes fundamentais, e a substituí-los por outros de menor valor. É por isso que o discurso típico “os alunos sabem cada vez menos”, “hoje os jovens não têm valores”, etc., já remonta à Antiguidade. E, no entanto, a ser verdade, hoje estaríamos certamente num estádio de evolução próximo do nosso patamar de início. Isto quer dizer que é difícil compreendermos, destrinçarmos, aquilo que no novo é bom, irá perdurar e fazermos evoluir, aquilo que no novo é mau e acabará por ser abandonado, aquilo que do antigo vale a pena preservar e aquilo que do antigo é preciso deixar cair.
Este sentimento é sobretudo agudizado quando, como acontece nos dias de hoje, somos apanhados em períodos de transição, em que emergem mudanças estruturais profundas nas nossas formas de vida, com a agravante de, neste caso, as mudanças ocorrerem a uma velocidade estonteante.
O tempo se encarregará, naturalmente, de fazer a selecção, preservando o que se revele útil e funcional e oferecendo o resto à História ou à Antropologia. Só que nós, que temos que viver todos os dias, acreditar em alguma coisa e tomar decisões, não podemos ficar à espera, e nesse sentido as tuas preocupações são da maior relevância.
Como o próprio Lévy refere, o declínio da verdade e da objectividade (quanto à crítica não concordo, para já) não emergiram da Internet ou do saber informatizado. São aspectos estruturantes da pós-modernidade, como o são o relativismo, a fragmentaridade, a indeterminação ou a ambiguidade. O que parece ter acontecido, na linha aliás do que diz Castells e eu me atrevo a levar um pouco mais longe, é que a pós-modernidade encontrou na Internet e na cultura digital, em muitos aspectos, uma realização concreta e operativa de muitos dos seus pressupostos teóricos.
Pensemos um pouco na reacção (estou aqui a ficcionar um pouco libertariamente, entenda-se) daqueles que assistiram à emergência da escrita e viram as suas gerações mais jovens abandonar o pensamento formulaico e mnemónico, o respeito pela preservação da memória em formas que pudessem facilmente evocar de cor, para se dedicarem a coisas mais estranhas como o pensamento abstracto, a introspecção e a reflexão por a escrita ter dispensado esse armazenamento na memória. Provavelmente, esta mudança que hoje sabemos ter sido fundamental para o nosso desenvolvimento terá parecido uma decadência grave nas competências e nos conhecimentos das novas gerações.
Hoje, algumas características da cultura pós-moderna encontram no mundo digital uma realização quase perfeita: a informação pode ser decomposta e recomposta, fragmentada, aglomerada em sínteses construídas a partir de diferentes linguagens (texto, gráficos, som, vídeo), a noção de autoria perde estabilidade, o receptor pode tornar-se também ele um produtor, etc. Ligado a isto, a própria velocidade a que a informação pode mudar, ser recombinada e distribuída, e o facto de a organização social na cultura digital tender muito mais para a horizontalidade (cooperação, entreajuda e partilha) ajudam a consolidar não só o subverter da objectividade, como também a resistência a discursos de poder ou a verdades absolutas. Daí resulta uma preferência pelo conhecimento operacionalizável, funcional, útil e adequado no momento em que precisamos dele. Se num outro contexto ou situação esse conhecimento se revelar imperfeito ou ineficaz, podemos, dada a rapidez e a facilidade de acesso à informação, mobilizar outras combinações, perspectivas ou actualizações que sejam mais adequadas nesse momento ou para esse fim.
É evidente que, no meio deste turbilhão, temos muitos problemas para resolver, desde a facilitação das competências necessárias para lidar de forma eficaz e produtiva com esta massa de informação, até à persistência na manutenção de competências e valores que achemos essenciais. Como tu muito bem dizes e eu concordo bastante, o incentivo à leitura, à sua interpretação, à escrita e à memorização “de cor” continuam e continuarão a ser ferramentas fundamentais na educação. Sem estes o “saber informatizado” não serve para nada.
A questão está em encontrar os caminhos para fazer isso de maneiras que acompanhem as novas formas de pensar, comunicar e lidar com o conhecimento e a informação na cultura digital, em vez de criar resistência e recusa. Porque afinal o que queremos é chegar àquilo que a Manuela, na minha opinião, exprimiu muito bem:
A velocidade que a era digital nos permite evoluir é uma mais valia para o conhecimento. Não dependemos das novas tecnologias mas sim dos novos processos que nos permitem alcançar mais conhecimento.
[] José Mota